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Alba Marchesini da realidade à ficção: ‘Os livros me salvaram’




Foto: Divulgação

Na videoconferência, o fundo de tela da Alba Marchesini é natural. Uma estante populosa acomoda livros sem lógica aparente. Enquanto ajustamos imagens e áudios para gravar mais um episódio do Vale do Suplício, penso que, talvez, eles estejam catalogados por ordem alfabética de autores. Ou será que ela conhece tão bem aqueles títulos a ponto de encontrar o que deseja ao escanear rapidamente com o olhar as fileiras de lombadas? Talvez eu devesse ter feito essa pergunta. Há quem acredite que a resposta a ela pode dizer muito sobre alguém.

Mas há outros indícios de como a Alba se manifesta no mundo. A estante atrás dela não é uma estratégia de decoração para compor um fundo digno do trabalho remoto. A estante tem contornos de realidade, como se estivesse ali desde outros tempos, quando o conhecimento estava acessível somente em páginas de livros. Ou é assim que inevitavelmente imagino o passado da Alba, a terceira filha entre as cinco irmãs Marchesini, regidas pela fibra materna de Irene, professora de português que a todas corrigia, ao sinal do mínimo erro.

A trajetória de uma agente literária

Alba Marchesini Milena é agente literária, fundadora e sócia da Increasy, que trabalha com autores e obras de ficção, de romance adulto a thriller, de terror a literatura para jovem adulto – este o carro-chefe da consultoria e, hoje em dia, um nicho fértil do mercado editorial brasileiro. A Increasy tem uma carteira atual de mais de 80 autores, o limite da produção da agência, e por isso novas submissões estão temporariamente pausadas. Mas o trabalho da consultoria literária extrapolou o texto. Ela tem se misturado com o mundo do audiovisual para venda de projetos a produtoras e empresas de streaming, para futuras produções de filmes e séries.

Ainda que animada com a chance de transformar grandes histórias de aposta da Increasy em cinema, Alba, como leitora voraz, parece gostar mesmo é de criar imagens em sua tela mental. 

“Palavras criam sentenças; sentenças criam parágrafos; às vezes, parágrafos aceleram e começam a respirar”, disse Stephen King, formando, apenas com letras, uma cena fiel sobre o que é a viagem da leitura. E, sob influência de Irene, Alba e as irmãs aprenderam que a relação com os livros é feita de silêncio e solitude, mas também de ação e companheirismo.

Essa história dá um livro

Entre lombadas de todos os tamanhos e cores, outros poucos itens dignos da estante de Alba guardam lugar. E o que mais combina com todo o acervo é um porta-retratos pequeno, com a foto de um menino. A harmonia não está no título, ou na aparência, e sim nas entrelinhas. O garoto, hoje um homem de 27 anos, é Lucas, filho único, diagnosticado com autismo severo quando criança. 

“Quando descobri o autismo do Lucas, eu não via muita perspectiva, pois tinha de me dedicar muito, passar horas sentada em consultórios enquanto ele fazia terapia. Eu não sabia para onde correr. Meu único assunto era o Lucas e autismo, e isso foi de 1998 até 2009, quando comecei a entender que poderia ser diferente”, conta Alba, que já havia desistido dos planos de cursar a faculdade de Direito quando confirmou a gravidez não planejada.



Alba Marchesini e a “turma”

Alba Marchesini e a “turma”

Foto: Divulgação

“Não planejado” parece uma definição até branda para os acontecimentos que moldam o roteiro (de não-ficção) da agente literária. Com quatro irmãs formadas na faculdade e exercendo suas respectivas profissões, a cobrança por ter ensino superior completo foi uma carga, mas também um veículo. Ela, que passava horas em companhia dos livros, à espera de Lucas, se formou autodidata. “Eu lembro que queria ler o primeiro livro do Harry Potter, mas não queria esperar seis, oito meses pela edição traduzida. Comecei a ler inglês assim. Tudo o que eu sei eu aprendi fazendo”, ela diz.

Ela só não mergulhava nos livros quando a irmã caçula, Adriele, a acompanhava nas consultas com Lucas, o que ocorria com alguma frequência. Aqui, cabe a mim dizer que qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência: Adriele, esta que comigo divide a bancada do Vale do Suplício e outras súplicas comuns de sócias e empreendedoras, é a irmã mais nova de Alba. “Eu sou a terceira filha, a que sempre esteve na mediação entre as mais velhas e as mais novas. Acho que sempre tive esse papel de mediadora, apaziguadora. A Adriele pode dizer”.

Adriele assente imediatamente com a cabeça.

Voltado ao roteiro das Marchesinis, era época do Orkut – aquela rede social que provoca nostalgia até nos Millennials mais desconectados. Alba entrou para comunidades de leitura e começou a perceber que muita gente não sabia ler em inglês. Ali mesmo, colocou em prática as horas de aprendizado em salas de espera, traduzindo para o português, capítulo por capítulo, obras que chegavam ao Brasil ainda em seu idioma de origem.

No Orkut, ela fez amizades, incluindo uma das quatro sócias na Increasy – mais uma casa de muitas mulheres. E das traduções até a escrita de resenha de livros, dos pareceres literários até a fundação da empresa de consultoria literária, o caminho foi se abrindo.

“Os livros me salvaram. Eles me mostraram o que eu gostava de fazer”, declara Alba. Embora, nos bastidores das Marchesinis, ela se declara, mesmo, ao Lucas. Mas essa é história para outra narrativa.

Este texto é baseado no depoimento de Alba Marchesini ao Vale do Suplício, podcast criado pelas jornalistas Adriele Marchesini e Silvia Paladino, e que conta histórias de empreendedores que falam pouco, mas fazem muito. Ouça no Spotify.

(*) Silvia Noara Paladino é jornalista e escritora especializada em narrativas de não-ficção, com pós-graduação em Escrita Criativa pela Universidade de Berkeley, na Califórnia. É autora de três biografias de empresários brasileiros. Colaborou com veículos setoriais e da grande mídia, como Folha de S. Paulo, e foi editora de CRN Brasil, uma das maiores revistas de tecnologia do mundo. É sócia-fundadora das agências essense e Lightkeeper, e também editora do projeto Destino Paralelo.

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