Videogames são a bola da vez, mas não é a primeira vez que eles ficam na mira do povo desesperado atrás de bodes expiatórios. Em verdade, nem há nada de especial neles.
Mortal Kombat é Amor (Crédito: Reprodução Internet))
Os videogames são apenas mais uma das coisas que a turma mais velha vê os jovens consumindo, não entendem e, portanto, deve ser maléfico e responsável por tudo isso que está aí. Essa atitude não é de hoje, basta lembrar da citação atribuída a Sócrates, mas que provavelmente foi posterior, talvez Rivelino:
“Os jovens de hoje amam o luxo; eles têm maus modos, desprezam a autoridade, não respeitam os mais velhos e falam quando deviam ficar calados. Eles contradizem seus pais, tagarelam na frente dos visitantes, devoram guloseimas à mesa, cruzam as pernas e tiranizam seus professores.”
Como na Atenas de 350 AC no máximo existia um ou outro NES, videogames não eram a maior fonte de má-influência, então a culpa era do vinho, das más-companhias, das peças de teatro com mensagens subversivas.
Avançando muito no tempo, chegamos na Londres do Século XVIII, que pode ser considerada a gênese da irritante moda de podcasts True Crime.
Na época se tornou moda, durante as execuções públicas (uma espécie de Big Brother bem mais divertido, deveriam retomar) eram vendidos livretos com a história dos condenados e seus crimes. O povo comprava esses livros baratinhos, que eram lidos avidamente, antes e depois das execuções.
Execução de Carlos I da Inglaterra, atribuída a Jan Weesop c.1649 (Crédito: Domínio Público)
Como a taxa de alfabetização não era muito melhor do que a nossa, as pessoas se reuniam em volta de quem soubesse ler, acompanhando avidamente as novidades, tipo o povo discutindo o tal Caso Evandro.
Com o tempo, os editores perceberam que não precisavam de crimes reais, e de qualquer jeito os autores inventavam boa parte dos detalhes. Passaram então a publicar (oficialmente) ficção, que por volta do Século XIX se diversificou, com histórias não só de crimes, mas romances baratos, sacanagem, sátiras sociais e políticas.
Capa de um típico Penny Dreadful. (Crédito: Domínio Público)
Esses livros se tornaram um fenômeno, eram chamados “Penny Dreadful”, por causa das histórias, inicialmente de horror ou assustadoras, e pelo preço, um penny (vintém, em português), 10 vezes mais baratas que um livro “de verdade”, e, portanto, acessíveis (e voltadas) para jovens homens de classe baixa.
Quanto valia um penny? Aqui pausa para kibar a deliciosa explicação de Neil Gaiman, no maravilhoso Belas Maldições (link puro, sem afiliado, apenas compre, é excelente:
“NOTA PARA JOVENS E AMERICANOS: Um xelim = Cinco pee. Ajuda entender as antigas finanças do Exército Witchfinder se você conhecer o sistema monetário britânico original:
Dois farthings = Um Ha’penny. Dois Ha’pennies = um Penny. Três pennies = Um Thrupenny Bit. Dois Thrupences = A Sixpence. Dois Sixpences = Um Xelim, ou Bob. Dois Bob = Um Florim. Um Florin e um Sixpence = Meia Coroa. Quatro Meias Coroas = Nota Dez Bobs. Duas notas de dez bobs = uma libra (ou 240 penies). Uma vez libra e um xelim = uma Guiné.
Os britânicos resistiram durante muito tempo à moeda decimalizada porque achavam que era muito complicado.”
Entre 1830 e 1860 havia mais de 100 editoras publicando esses folhetins, que entre 1860 e 1870 vendiam mais de um milhão de exemplares por semana, o que era extremamente lucrativo.
Obviamente, os “adultos” odiavam os Penny Dreadfulls. Diziam que não era literatura de verdade, que só publicavam histórias sensacionalistas, com lições de moral erradas, induzindo jovens ao vício, ao crime, à delinqüência, à devassidão e à sodomia.
O que está fazendo essas crianças se revoltarem? Os livretos, claro. (Crédito: Domínio Público)
O problema não era a migração em massa para as grandes cidades causada pela Revolução Industrial, epidemias, pobreza extrema, trabalho infantil, uma sociedade extremamente classista com zero potencial de crescimento vertical. O problema eram os livros vagabundos que os jovens liam para se distrair.
Na Era de Ouro do Rádio, nos anos 1930/1940, eram muito populares programas de mistério e aventuras de Detetive, como Dick Tracy e muitos outros. As crianças ficavam vidradas acompanhando as aventuras d’O Sombra, muitas vezes encenadas ao vivo em estúdios.
Isso, claro, atraiu a atenção dos suspeitos habituais: Médicos, pedagogos, psicólogos, que alertavam contra o perigo que aquelas histórias traziam para as frágeis mentes dos pequenos ouvintes, que seriam (mal) influenciados pelo que ouviam no Rádio.
Nos Loucos Anos 20 os conservadores apontaram suas armas para o Charleston, considerado uma dança imoral, corruptora de menores, com seus movimentos sexualmente sugestivos.
Tire as crianças da sala, prepara água benta para lavar os olhos, e se tiver coragem assista a atriz, cantora, comediante e espiã Josephine Baker dançando o Charleston, essa pouca-vergonha:
Nos Estados Unidos houve várias campanhas tentando banir o Charleston, com acusações de imoralidade, usando casos na melhor das hipóteses circunstanciais, como exemplo. Não deu muito certo, todo mundo adorava dançar Charleston, que desapareceu sozinho por volta de 1930, quando saiu de moda.
Música sempre foi a bola da vez, hoje em dia a gente já abraçou a zoeira do Rock ter associações demoníacas, é até bom que tenha (mesmo não tendo), vide o magnífico comercial “Endorcismo”, da Kiss FM:
Depois que Chuck Berry escutou a sugestão de seu primo Marvin, criou o Rock and Roll e o ritmo se popularizou, ele logo atraiu a atenção do povo que não tinha paciência para esperar os videogames serem inventados, e atribuíram ao Rock todos os riscos existentes.
Rock promovia rebeldia e individualismo. Rock atentava contra valores morais cristãos. Muitas estações de rádio se recusavam a tocar Rock. Algumas chegaram a organizar queima de álbuns. Na TV, Elvis Presley só era mostrado da cintura para cima, o rebolado que ele aprendeu com um garoto esquisito em Greenbow Alabama era considerado extremamente obsceno.
No auge do Perigo Vermelho, sobrou para o Rock -de novo- Rock foi acusado por vários grupos de ser uma criação dos comunistas, para desestruturar a sociedade americana, promovendo valores errados e animosidade contra a família tradicional.
O fato de muitos artistas terem um viés de esquerda, defendendo causas como Direitos Civis e denunciando racismo, não ajudou. Até mesmo o American Bandstand, um programa musical inofensivo, entrou na controvérsia. Eles eram progressistas, exibindo artistas e participantes negros, o que os colocou como inimigos, em uma época onde segregação racial era norma.
A grande ironia é que na União Soviética o Rock and Roll era extremamente proibido, Moscou via como exemplo didático da decadência ocidental, atentando contra os valores socialistas de coletivismo, promovendo individualidade e rebeldia.
Os videogames ainda não existiam para dividir a culpa pelos males da Juventude, mas para sorte do Rock, um infeliz chamado Fredric Wertham publicou em 1954 um livro chamado “Sedução do Inocente”, onde argumentava que a culpa da delinqüência juvenil, comportamento anti-social, notas baixas e homossexualismo era… História em Quadrinhos.
Wertham denunciava os quadrinhos, que eram essencialmente não-regulados e repletos de histórias de crime, horror e sexo, mas colocou também no pacote a nascente indústria de super-heróis, voltada para crianças e bem menos focadas em temas violentos e lascivos.
Ele fez seus estudos usando como base adolescentes entrevistados em instituições correcionais. Ou seja: Sem grupo de controle, todo adolescente que ele entrevistou estava preso por delinqüência, e a imensa maioria admitia ter lido em algum momento histórias em quadrinhos.
Codpiece, o ridículo vilão Z-List da DC, jamais seria publicado com o CCA ainda valendo. (Crédito: Reprodução Internet)
O absurdo disso é que todo adolescente lia gibis, mas é o argumento usado pelos críticos dos videogames mesmo hoje em dia. Sujeito cometeu um atentado em uma escola e jogava videogames? OBVIAMENTE culpa dos games, ignorando a quantidade de jovens que adoram videogames e não atiram nos coleguinhas.
Wertham conseguiu achar tons homossexuais em histórias totalmente inocentes, mas como ser gay era essencialmente ilegal -e antipatriótico, pois era usado pelos comunistas como chantagem- as editoras correram para banir qualquer possível referência e se abstiveram de mencionar mesmo que remotamente o Amor Que Não Deve Ser Mencionado.
Na TV os produtores criaram a figura da Tia Harriet, para não pegar mal mostrando o Bruce Wayne morando sozinho na mansão com o Dick Grayson. Nos quadrinhos, Batman casou com a Mulher-Gato, e tinha diversas parceiras para reafirmar sua masculinidade, para tristeza do Robin.
A acusações de Wertham chegaram ao Senado dos EUA, e para evitar ações do Governo, as editoras criaram o Comics Code Authority (CCA), uma espécie de código de censura que assolou os quadrinhos por décadas, a Marvel só abandonou o CCA em 2001, a DC, em 2010.
Entre as regras do Comic Code Authority:
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Cenas ou instrumentos relacionados a mortos-vivos, tortura, vampiros e vampirismo, ghouls, canibalismo e lobisomem são proibidos.
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Os crimes nunca devem ser apresentados de forma a criar simpatia pelo criminoso, promover a desconfiança das forças da lei e da justiça ou inspirar outros com o desejo de imitar os criminosos.
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Se o crime for retratado, será uma atividade sórdida e desagradável.
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Policiais, juízes, funcionários do governo e instituições respeitadas nunca devem ser apresentados de forma a criar desrespeito à autoridade estabelecida.
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Os criminosos não devem ser apresentados de forma a serem glamorosos ou ocupar uma posição que crie um desejo de emulação.
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Em todos os casos, o bem triunfará sobre o mal e o criminoso será punido por seus erros.
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As mulheres devem ser desenhadas de forma realista, sem exagero de quaisquer qualidades físicas.
Mais tarde foi descoberto que Wertham fez sua pesquisa escolhendo a dedo os casos, ignorando que vários adolescentes violentos entrevistados não tinham nenhuma interesse especial em quadrinhos, e não considerando os casos de jovens de reputação impecável que eram fãs de gibis.
Nos Anos 70/80 videogames ainda eram simples demais para causar muita controvérsia, embora cause síncopes nos floquinhos de neve atuais, nem Custer’s Revenge era motivo de reclamação, no tempo do Atari. A bola de vez era outra: RPGs. Mais especificamente, Dungeons & Dragons, que a maioria dos brasileiros conheceu destilado na forma do desenho Caverna do Dragão.
No começo da Década de 1980 surgiu nos EUA o chamado Pânico Satânico, que infelizmente não é a Sabrina Sato vestida de diabinha. Foi uma espécie de contágio social onde todo e qualquer crime violento era associado com satanismo.
Entre 1974 e 1985 o Conselho Nacional de Violência na Televisão associou Dungeons & Dragons a pelo menos 29 assassinatos e homicídios. Em 1979 um jovem de 16 anos chamado James Dallas Egbert III tentou suicídio nos túneis da Universidade de Michigan. Alguém comentou que Egbert era fã de RPG e que estava praticando LARP (Live Action Role Playing). William Dear, um investigador que acompanhou o caso não conhecia nada sobre RPG aceitou a informação como factual e apontou Dungeons & Dragons como causa de tudo.
Egbert, que sofria de depressão clínica, acabou cometendo suicídio um ano depois, sem nenhuma relação com RPGs.
Mais de 12 mil casos de “satanismo” foram identificados pelo mundo, associados a Dungeons & Dragons e outros RPGs. Todas as associações são circunstanciais, obviamente.
Sem estender demais este artigo quilométrico, mais alguns temas que foram considerados perigosos para crianças, má-influência e causadores de delinquência juvenil:
- Televisão
- Filmes de terror
- Pokemon
- Magic (o jogo de cartas)
- Tatuagens
- Harry Potter
- Armas de brinquedo
- GI Joe
- Desenhos violentos (como Tom e Jerry, sério)
- Skate
E os Videogames?
Depois que os gráficos melhorara-nah, quem quero enganar? Doom era considerado ultraviolento, com imagens “realistas” de sangue, tripas, desmembramentos. A controvérsia foi tão grande, com tantas organizações pedindo censura e banimento, que em 1994, por causa de Doom e Mortal Kombat foi criado o ESRB (Entertainment Software Rating Board), a organização que avalia e cria faixas etárias para videogames.
Não que tenha feito diferença, o povo que ama uma censura vivia pedindo o banimento de jogos como o GTA, por -o de sempre- promover comportamento criminoso, valores errados, etc.
Mais recentemente o GTA voltou às manchetes, dessa vez com a hilária acusação de que hackers estariam praticando “estupro virtual” no jogo. A reportagem fala de imagens “perturbadoramente realistas”. Seja você o juiz:
O pedido apresentado pelo deputado Zé Trovão (sic) segue a mesma linha: Ele pede que o Ministério da Justiça proíba “jogos eletrônicos que incitem ou estimulem comportamentos violentos pelo prazo de 30 dias, a fim de investigar a relação entre os jogos eletrônicos violentos e a violência”.
Infelizmente essa não é nem uma atitude inédita. O Brasil tem um fetiche por ações guturais que parecem importantes, mas não estão nem remotamente ligadas ao problema. Nós já proibimos Carmageddom, um jogo besta, porque algum engravatado achou que crianças de 12 anos roubariam o carro para atropelar velhinhas.
O horror, o horror! (Crédito: Reprodução Internet/Stable Diffusion)
Céus, segundo esta matéria no The Enemy, proibimos até Everquest, com a inacreditável justificativa que
“O jogo leva o jogador ao total desvirtuamento e conflitos psicológicos ‘pesados’; pois as tarefas que este recebe, podem ser boas ou más”.
O nobre deputado pede que se investigue a relação entre jogos eletrônicos violentos e a violência. Digníssimo, essa relação vem sendo estudada desde os anos 70.
Segunda a Academia Americana de Psicologia:
“Surgiram poucas evidências que façam qualquer conexão causal ou correlacional entre jogar videogames violentos e realmente cometer atividades violentas.”
Em 2017 um estudo maior achou uma “associação pequena e confiável entre o uso violento de videogame e resultados agressivos, como gritar e empurrar”, mas não conseguiu estender isso a atividades mais violentas. Um estudo de 2019, de Christopher Ferguson chamado “Videogames agressivos não são um fator de risco para agressão futura na juventude: um estudo longitudinal” concluiu que, bem, o título já é um spoiler.
Tentando provar a associação, um estudo do Serviço Secreto dos EUA de 2002 com 41 indivíduos envolvidos em tiroteios em escolas descobriu que 12% eram atraídos por videogames violentos, 24% liam livros violentos e 27% eram atraídos por filmes violentos.
Os pesquisadores externos apontaram que esses números ficam abaixo da média do jovem comum, que não participa de massacres escolares. Se o estudo do Serviço Secreto provou algo é que os psicopatas que atiram em escolas ligam menos pra videogames.
O covarde que atacou a creche em Blumenau sequer tinha computador, quiçá um console. Sua motivação foi motivada por seus demônios internos, e é a eles que ele terá que responder quando chegar no Inferno, não aos da Bethesda.
O que o tal deputado quer é o de sempre, mostrar que está fazendo alguma coisa, sem fazer absolutamente nada, apontando um bode expiatório conveniente, um alvo fácil, que não pode retaliar ou se defender. A culpa não é da sociedade que ignora os sinais desses psicopatas, não é da falta de segurança, não é nem das estrelas. A culpa é do guri de 12 anos jogando Overwatch (as crianças ainda jogam Overwatch), da tiazinha jogando Diablo e do blogueiro procrastinando matando a escória rebelde no Battlefront II.
Apontar dedos é fácil, reconhecer que problemas difíceis demandam soluções complexas, é difícil. De resto, pelo menos dessa vez ninguém dará ouvidos ao deputado, mas não tenham dúvidas, meninos e meninas, assim que for conveniente, videogames voltam a ser a bola da vez, culpados de todos os males do mundo.
De minha parte, vou admitir que videogames de vez em quando até estimulam pensamentos violentos sim, é impossível não se deliciar matando Hitler no Sniper Elite:
Fontes:
- Penny dreadfuls: the Victorian equivalent of video games
- Chills and thrills: does radio harm our children? The controversy over program violence during the age of radio
- The Nicest Kids in Town: American Bandstand, Rock ‘n’ Roll, and the Struggle for Civil Rights in 1950’s Philadelphia (Book Review)
- Comic Code Authority
- INC 361/2023
- Aggressive Video Games are Not a Risk Factor for Future Aggression in Youth: A Longitudinal Study
- Do Role‐Playing Games Promote Crime, Satanism and Suicide among Players as Critics Claim?
- Video Games Aren’t Why Shootings Happen. Politicians Still Blame Them.